quinta-feira, 10 de junho de 2010

Cálice...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...(2x)

Como beber
Dessa bebida amarga
Tragar a dor
Engolir a labuta
Mesmo calada a boca
Resta o peito
Silêncio na cidade
Não se escuta
De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Como é difícil
Acordar calado
Se na calada da noite
Eu me dano
Quero lançar
Um grito desumano
Que é uma maneira
De ser escutado
Esse silêncio todo
Me atordoa
Atordoado
Eu permaneço atento
Na arquibancada
Prá a qualquer momento
Ver emergir
O monstro da lagoa...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

De muito gorda
A porca já não anda
(Cálice!)
De muito usada
A faca já não corta
Como é difícil
Pai, abrir a porta
(Cálice!)
Essa palavra
Presa na garganta
Esse pileque
Homérico no mundo
De que adianta
Ter boa vontade
Mesmo calado o peito
Resta a cuca
Dos bêbados
Do centro da cidade...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Talvez o mundo
Não seja pequeno
(Cálice!)
Nem seja a vida
Um fato consumado
(Cálice!)
Quero inventar
O meu próprio pecado
(Cálice!)
Quero morrer
Do meu próprio veneno
(Pai! Cálice!)
Quero perder de vez
Tua cabeça
(Cálice!)
Minha cabeça
Perder teu juízo
(Cálice!)
Quero cheirar fumaça
De óleo diesel
(Cálice!)
Me embriagar
Até que alguém me esqueça
(Cálice!)

Composição: Chico Buarque e Gilberto Gil

Durante o período militar, muitas formas de arte foram censuradas, por apresentarem oposição à ditadura. Um dos exemplos mais marcantes do período foi a música Cálice, composta por Chico Buarque em parceria com Gilberto Gil. Além do título da composição ter som idêntico à expressão Cale-se, seus versos poderiam ser confundidos com uma divagação religiosa. A música foi composta no ano de 1973.

Meu caro amigo

Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando e também sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita careta pra engolir a transação
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus

Composição: Chico Buarque / Francis Hime


Essa foi uma das canções que Chico Buarque fez na ditadura. Ela é uma carta em forma de música e foi composta para o seu amigo Augusto Boal, um dos maiores dramaturgos brasileiros, quando esse estava exilado em Lisboa, Portugal. Nela, Chico retrata a situação em que se encontrava o Brasil, sob a pressão da ditadura militar. A canção foi lançada originalmente num disco de título quase igual, chamado Meus Caros Amigos, do ano de 1976.

Chico Buarque de Holanda

Biografia

Francisco Buarque de Hollanda é compositor, cantor, teatrólogo e escritor. Nasceu no Rio de Janeiro em 1944. Ainda pequeno, mudou-se para São Paulo, e logo passou uma temporada na Europa. Filho de um historiador respeitado, desde criança conviveu com personalidades da música brasileira, amigos de seu pai.

Compôs a primeira canção quando tinha pouco mais de dez anos, chamava-se “Canção dos Olhos”. Em 1965, lançou seu primeiro compacto. No ano seguinte, “A Banda” empata com “Disparada” em primeiro lugar no II Festival de MPB, e em 1968 vence o Festival Internacional da Canção com “Sabiá".

Depois de uma temporada na Itália, volta ao Brasil em 1970 e compõe uma de suas mais importantes músicas, como sinal de protesto político, “Apesar de Você”. Devido à censura, em 1972, o cantor assume o nome de Julinho da Adelaide para que suas canções não fossem barradas.

Em 1975, grava a canção “O Que Será” para o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, e lança o disco “Meus Caros Amigos”. O ano de 1978 foi cheio de realizações, dentre elas estão o lançamento do álbum duplo “Ópera do Malandro” e do LP “Chico Buarque 1978”, o Prêmio Molière como melhor autor por “Gota D'Água”, e seu primeiro livro infantil, “Chapeuzinho Amarelo”.

Na década de 80, Chico participou ativamente do movimento Diretas Já, que teve “Vai Passar”, composta pelo cantor, como um dos hinos. Lançou vários LPs, incluindo “Vida” com o grande sucesso “Eu Te Amo”. Junto de Caetano Veloso, apresentou o programa “Chico e Caetano” na Rede Globo.

Escreve seu primeiro romance em 1992, e cinco anos depois participa do disco “Chico Buarque de Mangueira”, escola de samba que o homenageou no desfile de 1998, tornando-se campeã. Após dez anos sem lançar um disco de inéditas, sendo o último “Uma Palavra” (1995), chega ao público “Carioca”, que foi seguido do CD e DVD “Carioca Ao Vivo” em 2007. Chico Buarque é hoje referência no tocante à Música Popular Brasileira e um dos mais renomados compositores de todos os tempos.